O que há de verdade nos boatos sobre a vacina da febre amarela

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“Está confirmada suspeita. O vírus já mutou. A vacina já não protege. Evitar locais com incidência da doença. E é mais agressivo.”

A mensagem viralizou em grupos de WhatsApp nos últimos dias. Era mais um alerta sobre a vacina da febre amarela. O link remete a uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre mutações no vírus da doença, mas, apesar da roupagem científica, o trecho sobre a ineficácia da vacina por esse motivo é falso.

Também não se fundamentam, segundo a Fiocruz, outros boatos em torno do imunizante que circulam nas redes sociais, como o de que a vacina contém mercúrio e deve ser evitada por quem tem alergia a insetos.

A fundação e especialistas buscaram derrubar essas e outras informações falsas sobre os efeitos da vacinação em massa. Confira:

Mutação de vírus não necessariamente afeta eficácia de vacinas

No link que acompanhava o aviso sobre a mutação, via-se uma pesquisa da Fiocruz mostrando que a ela própria havia identificado mutações na sequência genética do vírus da febre amarela. Estudiosos falavam em modificações na composição de proteínas importantes na sua replicação. “Os pesquisadores consideram que é possível haver uma vantagem seletiva, refletindo-se na capacidade de infecção e disseminação do vírus”, afirma o texto.

Logo em seguida, porém, uma ressalva: “Novas pesquisas são fundamentais para determinar se essas modificações no genoma são específicas dos microorganismos envolvidos no surto atual”.

Quanto aos efeitos dessa descoberta na eficácia da vacina em voga, os especialistas destacavam no último parágrafo que “o imunizante adotado atualmente protege contra genótipos diferentes do vírus, incluindo o sul-americano e o africano”. E que “as alterações detectadas no estudo não afetam as proteínas do envelope do vírus, que são centrais para o funcionamento da vacina”.

A pesquisa é real. Versa sobre as mutações e foi divulgada no site da Fiocruz em 17 de maio de 2017. Essa data, porém, não aparece no suposto alerta divulgado nas redes sociais. O fato de a informação sobre a vacina surgir apenas no derradeiro parágrafo provavelmente favoreceu seu uso como fonte. Muitos leitores talvez tenham compartilhado a informação sem chegar ao final do texto.

Em nota publicada em seu site, a Fiocruz, fornecedora exclusiva da vacina nos postos de saúde públicos, reiterou o que já constava do artigo original: as mutações do vírus encontradas pelos cientistas não afetariam a eficácia do imunizante.

A chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz, Myrna Bonaldo, explicou com mais detalhes.

“Para entender os possíveis impactos de mutações no genoma de um ser vivo é importante entender que, de forma muito simplificada, o genoma é um acervo de informações que orienta a produção de proteínas”, afirmou ela.

Segundo a especialista, no caso do vírus da febre amarela, diferentes trecho do genoma orientam a produção das proteínas que constituem a estrutura do vírus e a “maquinaria de replicação viral” – ou seja, sua capacidade de se multiplicar.

“O conjunto de mutações que nosso grupo de pesquisa identificou no vírus da febre amarela em circulação no país, descrito no estudo publicado em 2017, localizam-se principalmente em duas proteínas do vírus, que estão envolvidas na replicação viral. No entanto, não ocorre mudança nas proteínas do envelope do vírus – que são o principal alvo da resposta de anticorpos neutralizantes provocada pela vacina.”

Não há uso de mercúrio nem riscos a alérgicos a picadas de insetos

Outro boato trata da presença de mercúrio utilizado como conservante da vacina e seu potencial risco para os rins.

Ele se basearia em reportagem publicada no Jornal da USP de setembro de 2016 que focava no uso de timerosal (substância que contém mercúrio) como agente antisséptico em frascos multidoses, a fim de impedir contaminação durante a manipulação. O texto não mencionava a febre amarela.

A fundação nega qualquer evidência desse conservante na vacina. “O processo de produção da vacina da febre amarela da Bio-Manguinhos/Fiocruz não envolve nenhuma substância que contenha timerosal”, afirma a Fiocruz.

Para quem divulgou que pessoas alérgicas a picadas de insetos deveriam fugir dos postos de saúde (um vídeo encontrado no YouTube passa sobre o tema), a resposta da Fiocruz foi mais sucinta e objetiva: “Não há nenhuma relação”.

Muitos portadores de HIV devem se vacinar

“A verdade é que tudo o que acontece na vida de um indivíduo nos dias seguintes à vacinação ele tende a relacionar com a vacina”, diz a pediatra Monica Guarnieri Machado, diretora do Centro de Referência IST/HIV/Hepatites Virais de Diadema (SP). “No entanto, (a vacina) é o que temos de melhor do ponto de vista preventivo.”

Guarnieri morou seis anos na África trabalhando com ONGs humanitárias como Fidesco e Médicos Sem Fronteiras. “A cobertura de qualquer vacina na África é muito baixa, mas eu me lembro muito bem da tristeza que foi a epidemia de sarampo em Moçambique, em 2010, que afetou especialmente os jovens”, diz.

Ela aproveita para ressaltar que portadores do vírus HIV com CD4 maior que 350 não só podem como devem tomar a vacina. CD4 é o indicador usado para medir a imunidade do paciente.

“Essa é uma mensagem extremamente importante, que deve ser vinculada, porque há muitos portadores do HIV que não estão indo aos postos por acreditar que não podem ser imunizados”, afirma.

Descrença em vacinas: problema aqui e na Europa

Ativistas antivacina proliferam pelo mundo. O continente europeu vive um surto de sarampo – são mais de 21 mil casos, centenas de hospitalizados e 35 mortos só em 2017. A Organização Mundial de Saúde (OMS) qualifica esse cenário como “uma tragédia impossível de aceitar”.

A disseminação do vírus seria fruto, em parte, do rechaço à imunização provocado por um estudo feito há vinte anos de autoria de Andrew Wakefield. O britânico relacionava a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola ao autismo. Seu trabalho foi carimbado como “fraudulento” e ele está proibido de exercer a medicina no Reino Unido, mas sua tese ainda reverbera.

A Itália, um dos países em que ele teria coletado dados, foi o segundo com maior número de casos de sarampo na Europa em 2017 – cogita-se que a crença na relação da vacina com o autismo esteja por trás do problema.

Em maio passado, o governo determinou que crianças de até 6 anos deveriam ser vacinadas contra doze doenças antes de serem matriculadas nas escolas públicas. Os responsáveis que não acatarem o determinado podem ser multados em até 2,5 mil euros.

A medida causou revolta. Na semana passada, italianos saíram às ruas de Roma para protestar contra o fascismo, o neorracismo, as reformas trabalhistas… e a vacinação obrigatória.

Mensagens mais objetivas e bem-humoradas

Para o antropólogo britânico John Kinsman, professor de Saúde Global na Universidade de Umea, na Suécia, os governos deveriam investir mais e melhor nas mensagens passadas à população em campanhas do gênero.

Kinsman integra projetos envolvendo três epidemias que já foram consideradas emergências de saúde pública global pela OMS: poliomielite, ebola e zika.

Ele explica que na Nigéria, por exemplo, a pólio está ressurgindo porque alguns imãs (autoridades religiosas) consideram a vacina contra a doença uma “trama ocidental para esterilizar as garotas”.

“Nas áreas sob controle do grupo (extremista) Boko Haram, as taxas de vacinação contra a poliomielite são muito baixas”, afirma.

Considerando as tamanhas diferenças e resistências culturais, como derrubar boatos e conquistar adeptos à imunização?

“Objetividade casada com certa dose de humor talvez seja uma saída”, diz o antropólogo.

Matéria: BBC.