“Por quê? Foi uma coisa que eu fiz? Será que eu poderia ter evitado?” Essas perguntas passavam pela cabeça de Ana Maria Mello quando, há 39 anos, recebeu o diagnóstico de autismo do seu filho Guilherme.
“Comecei a lembrar de tudo o que tinha acontecido durante a gravidez. Era um bebê tão desejado. Queria saber a causa”, se recorda Ana, uma das fundadoras da Associação de Amigos do Autista, com sede em São Paulo. É um questionamento que, ainda hoje, milhares de mães e pais se fazem ao redor do mundo.
A ONU, que estabeleceu 2 de abril como Dia Mundial de Conscientização do Autismo, afirma haver cerca de 70 milhões de autistas no mundo – sendo mais comum em meninos do que meninas. No Brasil, não há estatísticas oficiais, mas se estima que 2 milhões de pessoas estejam no espectro autista.
Um projeto de lei circula na Câmara dos Deputados propondo a coleta obrigatória de dados sobre autismo nos censos demográficos a partir de 2018.
O que mais intriga cientistas do mundo inteiro, no entanto, é por que essa síndrome se desenvolve.
Teorias já rejeitadas
Desde que o autismo foi identificado pelo psiquiatra austríaco Leo Kanner, em 1943, pesquisadores tentam entender os fatores que levam a essas desordens complexas do desenvolvimento cerebral – atualmente fundidas sob um único diagnóstico, Transtorno do Espectro Autista (TEA) – que geram dificuldade de comunicação social e comportamento repetitivo em diversos graus de intensidade.
Lá atrás, Kanner culpou as mães. Pioneiro no estudo de autistas, ele cunhou a expressão “mães-geladeiras” àquelas mulheres que, supostamente, se mantinham distantes de seus bebês recém-nascidos. A falta desse vínculo afetivo, segundo ele, levaria ao autismo.
A tese foi completamente descartada no meio acadêmico ao longo dos anos e o próprio médico mais tarde tentou se retratar no livro Em Defesa das Mães.
Outra teoria rechaçada entre os cientistas foi a de que a vacina tríplice viral causaria o autismo. Dezenas de amplos estudos ao redor do mundo descartaram essa hipótese, a ponto de o autor da teoria, o médico britânico Andrew Wakefield, ter sido considerado “inapto para o exercício da profissão” pelo Conselho Geral de Medicina do Reino Unido.
A Organização Mundial da Saúde destaca em seu site que “não há evidência que sugira que qualquer vacina infantil possa aumentar o risco de TEA”.
Causas?
Mas o que causa o autismo então? Não há uma resposta definitiva. Assim como cada criança autista é única, as causas que levam a essa desordem neurológica também são únicas, podendo haver uma ou várias associações.
“Existem algumas teorias do porquê do autismo”, diz Patrícia Beltrão Braga, professora de embriologia e genética da Universidade de São Paulo (USP). “Temos fatores genéticos influenciando, então seria uma carga hereditária ou mutações novas. Outras teorias dizem que pode haver uma influência do ambiente, como uma infecção, algum remédio que a mãe tomou ou até poluição”, diz.
No estudo O que causa o autismo? Explorando a contribuição ambiental, da Escola de Medicina Mount Sinai, de Nova York, publicado em 2010, foram listados agentes que, em contato com a mãe durante a gravidez, causariam TEA no feto que está se formando: talidomida (usado para tratamento de doenças como câncer, lúpus, tuberculose, entre outras), misoprostol (para combater úlcera), ácido valpróico (para tratamento de epilepsia e transtorno bipolar), infecção por rubéola e clorpirifós (agrotóxico utilizado para controle de pragas).
Outros fatores ambientais estão sendo estudados como possíveis causadores do autismo.
A questão é saber qual a porcentagem de “culpabilidade” desses agentes, isto é, se eles sozinhos causam autismo ou se precisam estar ligados a fator genético ou biológico.
No Instituto de Biociências da USP há uma outra linha de investigação. “Conseguimos ver uma relação causal entre a neuroinflamação e o autismo”, relata Beltrão Braga.
A partir da análise de dentes de leite doados por familiares de crianças autistas, os cientistas da USP constataram que a inflamação dos astrócitos (células que estão no cérebro), ocasionada por um desequilíbrio do sistema imune, prejudicava o desenvolvimento dos neurônios – os quais ficavam menos ativos, ocasionando o autismo, segundo os pesquisadores.
Vale destacar, porém, que o estudo abrangeu apenas crianças diagnosticadas com o autismo clássico, o que significa que nem todas as variantes do espectro poderiam ser enquadradas nessa possível causa.
A parte genética
“O que se acredita com mais força que seja causador do autismo é uma base genética, quer seja hereditária, em que os pais passaram para o filho, quer seja uma mutação nova, em que aparece somente na criança. A complexidade é que existem centenas de genes”, explica o psiquiatra Estevão Vadasz, criador do Programa Transtornos do Espectro Autista da Faculdade de Medicina da USP.
Já foram identificados entre 700 e 800 genes descritos como causadores de alguns casos de autismo.
“Os estudos estão avançando e, provavelmente, daqui a poucos anos a gente vai conseguir descobrir um número maior de genes e mapear melhor esses indivíduos que têm autismo e talvez entender quais foram as causas de cada um”, prevê Beltrão Braga.
Embora várias associações possam estar correlacionadas à causa do TEA, na genética os pesquisadores conseguem trabalhar com elementos mais objetivos.
A comparação de gêmeos idênticos (que compartilham 100% do mesmo material genético) e não-idênticos (que compartilham 50% do mesmo material genético) é uma das formas que os acadêmicos utilizam para esclarecer o aspecto genético do transtorno.
Foi constatado em estudos que, no caso de gêmeos idênticos, a probabilidade de ambos os irmãos terem autismo era de cerca de 70%. Isso baixava para 30% no caso de gêmeos não idênticos e ficava abaixo de 20% entre irmãos não gêmeos.
Outro levantamento feito na Suécia analisou todos os nascimentos no país entre 1973 e 2001. Foi constatado que o risco de uma criança nascer com autismo aumentava à medida que a idade do pai avançava. Isso ocorreria porque os espermatozoides teriam mais mutações genéticas.
Dúvidas e terapias
No instituto de pesquisa Simons Foundation Autism Research Initiative (SFARI), de Nova York, foram analisadas as informações genéticas de 2,5 mil famílias com uma criança autista, mas cujos pais e mães não apresentavam histórico de TEA.
Ao comparar o DNA da criança com o dos pais foi constatado que em cerca 25% dos casos ocorreu a chamada “mutação de novo”, isto é, que não foi herdada por nenhum dos pais – a alteração de um ou de alguns genes ocorreu apenas na criança.
Com isso, foi possível identificar com clareza a causa genética do transtorno. Nos demais 75% dos casos, no entanto, os pesquisadores não conseguiriam verificar as possíveis origens do autismo.
“A medicina e a biologia não são como a matemática. Sempre vai ter uma parcela de indivíduos de quem não vamos saber a causa, o motivo pelo qual ele desenvolveu o quadro de autismo”, diz Beltrão Braga.
Há também, segundo a neurocientista, uma questão de suscetibilidade. “Temos uma combinação genética que às vezes torna o indivíduo mais suscetível a uma alteração que o ambiente está forçando ou mais resistente”, ela diz.
“Quando todos ficam gripados na mesma casa, por exemplo, um não fica mais afetado do que o outro? É a genética que faz cada indivíduo responder de formas diferentes a agentes externos.”
Desvendar as múltiplas associações à etiologia do autismo é um desafio aos cientistas e uma esperança às milhares de famílias ao redor do mundo que convivem com essa condição permanente.
Não há uma cura, mas sim tratamentos focando em terapias comportamentais e físicas.
Ao mesmo tempo, o conhecimento genético traria, teoricamente, a possibilidade de se consertar uma mutação ou desenvolver um medicamento específico, por exemplo.
É uma linha de pesquisa, contudo, que trará muitas discussões, em particular no campo ético, como ressaltou em um artigo Simon Baron Cohen, diretor do Centro de Pesquisa de Autismo da Universidade de Cambridge e uma referência mundial no estudo de TEA.
“A ética do mapeamento genético ou da terapia genética deve ser pensada bem antes desses ficarem disponíveis. (…) Pesquisas futuras deverão focar na avaliação de até quando qualquer forma de intervenção reduz as deficiências enquanto apoia as virtudes de cada autista.”